segunda-feira, 13 de maio de 2024

do Retorno ao desconhecido

 






Conheci-os desterrados.
Acabados de chegar.
Traziam nos olhos os tons dos pores do sol na savana.
Os amarelos torrados e os sons do horizonte a perder de vista.
Ocres das terras e azuis que, de tão azuis, feriam os olhos cá por recordarem o que deixaram lá.
Eram diferentes.
Tinham mais mundo.
Muito mais mundo.
Sabiam que o horizonte não morre no mar ali diante dos nossos olhos.
Sabiam que o horizonte é infinito...
Como é infinito o que trouxeram apertado contra o peito e que tanta vez os deve ter feito verter lágrimas iguais às dos outros. Iguais às dos que salgaram o mar que Pessoa cantou.
E nós por cá.
Recentemente libertados.
Orfãos de vida e de sonho.
Tão orfãos que nem sabíamos o que tínhamos deixado de viver. 
Tão orfãos que nos faltava saber como lidar com a liberdade, 
E eles desterrados.
Com frio.
O frio que sentiam nos olhares dos que por cá insistiam em querer acreditar que os treze anos de mortandade que nos ceifaram uma geração se deveram a eles que fugiam - refugiados - empurrados para uma terra onde muitos nunca tinham entrado porque a outra, a dos pores do sol que nunca se esquecem é que é a terra deles.
Mil novecentos e setenta e cinco.
Um ano para lembrar.
E tentar acomodar. 
Enfiar o mundo no buraco de uma agulha.

quinta-feira, 9 de maio de 2024

da Xaropada mais famosa do mundo

 

(A imagem foi surripiada à Wikipédia)


John Pemberton foi ferido numa perna na Guerra Civil americana e ficou dependente do uso de produtos para combater as dores para o resto da vida.
De regresso a Atlanta, estabeleceu-se como boticário (o que é hoje um farmaceutico) para conseguir ter acesso mais facilitado aos produtos, opiácios e outros, que lhe permitissem atenuar as dores.
Neste mesmo dia, mas em 1886, vendeu na sua botica a primeira dose de um xarope estimulante que inventou e que prometia (e cumpria) uma saúde ferro e muita vitalidade a quem o tomasse.
Assim nasceu a Coca-Cola.
Coca porque tinha efectivamente extracto de folha de coca e cola porque a cafeína do produto provinha da noz de Kola.
A Coca Cola é o produto comercial mais bem sucedido do mundo. 
Começou por ser vendida como xarope ao qual se acrescentava água, depois foi adoçada e passou a ser vendida em cafés e restaurantes onde era servida com água gaseificada, até ser engarrafada e distribuída pelo comércio a partir de 1894.
A expansão pelo mundo aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial ao ser fornecida aos soldados americanos estacionados na Europa e o crescimento da marca nunca mais parou.
Logo a seguir à guerra, já se vendiam mais de quarenta mil garrafas de Coca-Cola por minuto em todo o mundo.
No início do sec. XX, o sucesso do produto tornou-se obvio e nasceram em vários locais dos Estados Unidos vendedores a comercializarem cópias da bebida ou mesmo bebidas originais vendidas com nomes semelhantes e em garrafas semelhantes.
Em face disto, a Coca-Cola resolveu criar uma garrafa única, devidamente patenteada, que pudesse ser reconhecida no escuro ou mesmo em cacos, caso caísse e se partisse.
Acerca da garrafa, existem duas curiosidades históricas, ambas por confirmar, mas deliciosas.
A primeira que diz que a actual garrafa, mais magra que a original criada em 1916 pela Root Glass Company, tem como base as curvas da actriz Mae West e a segunda que diz que a empresa percebeu mal o nome da companhia e pensava que a garrafa se destinava a conter cacau e que por isso a desenhou semelhante a uma noz de cacau.
O que se sabe, e isto é facto, é que a garrafa da coca-Cola é um ícone da cultura pop do seculo XX, tão famosa como o líquido que contém.
E tudo começou com um xarope estimulante inventado por um homem que, actualmente seria, é o mais provável, viciado em oxicodona. 

terça-feira, 7 de maio de 2024

do Pacheco, epistológrafo e comunista, diz-que, que faz hoje anos

Mesmo morto, o Pacheco faz hoje noventa e nove anos.
Oremos.


CÔRO DE ESCARNHO E LAMENTAÇÃO DOS CORNUDOS EM VOLTA DE S. PEDRO


MONÓLOGO DO 1.º CORNUDO
I
Acordei um triste dia
Com uns cornos bem bonitos.
E perguntei à Maria
Por que me pôs os palitos.
II
Jurou por alma da mãe
Com mil tretas de mulher
Que era mentira. Também
Inda me custava a crer...
III
Fiquei de olho espevitado
Que o calado é o melhor
E para não re-ser enganado,
Redobrei gozos de amor.
IV
Tais canseiras dei ao físico,
Tal ardor pus nos abraços
Que caí morto de tísico
Com o sexo em pedaços!
V
Esperava por isso a magana?
Já previa o que se deu?...
Do além vi-a na cama
Com um tipo pior do que eu!
VI
Vi-o dar ao rabo a valer
Fornicando a preceito...
Sabia daquele mister
Que puxa muito do peito.
VII
Foi a hora de me eu rir
Que a vingança tem seus quês:
«O mais certo é práqui vir,
Inda antes que passe um mês».
VIII
Arranjei-lhe um bom lugar
Na pensão de Mestre Pedro
(Onde todos vão parar
Embora com muito medo...)
IX
Passava duma semana
O meu dito estava escrito
Vítima daquela magana
Pobre tísico, tadito!
DUETO DOS 2 CORNUDOS
X
Agora já somos dois
A espreitar de cá de cima
Calados como dois bois
Vendo o que faz a ladina
XI
Meteu na cama mais gente
Um, dois, três... logo a seguir!
Não há piça que a contente
É tudo que tiver de vir!
S. PEDRO, INDIGNADO, PRAGUEJA.
XII
- É de mais!... Arre, diabo!
- Berra S. Pedro, sandeu.
–E mortos por dar ao rabo
Lá vêm eles pró Céu!
CORO, PIANÍSSIMO, LIRISMO
NAS VOZES
XIII
Que morre como um anjinho
Quem morre por muito amar!
CORO, AGORA NARRATIVO
OU EXPLICATIVO.
Já formemos um ranchinho
De cá de cima, a espreitar.
XIV
Passam meses, passa tempo
E a bela não se consola...
Já semos um regimento
Como esses que vão prá Ingola!
(ÁPARTE DO AUTOR DAS COPLAS:
«COITADINHOS!»)
XV
Fazemos apostas lindas
Sempre que vem cara nova.
Cálculos, medidas infindas
Como ela terá a cova.
XVI
Há quem diga que por si
Já não lhe topou o fundo...
Outros juram que era assi
Do tamanho... deste Mundo!
XVII
- Parecia uma piscina!
–Diz um do lado, espantado.
- Nunca vi uma menina
Num estado tão desgraçado!
APARTE DO AUTOR, ANTIGO MILITANTE DAS ESQUERDAS (BAIXAS).
XVIII
(Um estado tão desgraçado?!...
Pareceu-me ouvir o Povo
Chorando seu triste fado
nas garras do Estado Novo!)
XIX
O último que chegou cá
Morreu que nem um patego:
Afogado, ieramá,
Nos abismos daquele pego.
O CORO DOS CORNUDOS,
ACOMPANHADO POR S. PEDRO EM SURDINA,
ENTOA A MORALIDADE, APÓS TER
LIMPADO AS ÚLTIMAS LAGRIMETAS
E SUSPIRANDO COMO SÓ OS CORNUDOS SABEM.
XX
Mulher não queiras sabida
Nem com vício desusado,
Que podes perder a vida
Na estafa de dar ao rabo.
XXI
Escolhe donzela discreta
Com os três no seu lugar.
Examina-lhe a greta,
Não te vá ela enganar...
XXII
E depois de veres o bicho
E as maneiras que tem
A funcionar a capricho,
Já sabes se te convém.
XXIII
Mulher calma, é estimá-la
Como a santa no altar.
Cabra douda, é rifá-la...
- Que não venhas cá parar.
XXIV
Este conselho te dão,
E não te levam dinheiro...
Os cornudos que aqui estão
Com S. Pedro hospitaleiro.
XXV
Invejosos quase todos
Dos conos que o mundo guarda
FAZEM MAIS UM BOCADO DE LAMENTAÇÃO.
NOTA DO AUTOR: QUASE,
PORQUE ENTRETANTO
ALGUNS BRINCAVAM UNS COM OS OUTROS.
RABOLICES!
Mas se fornicas a rodos
Tua vinda aqui não tarda!
RECOMEÇA A MORALIDADE, ESTILO
ESTÃO VERDES, NÃO PRESTAM.
ALGUNS BÊBADOS, CORNUDOS
DESPEITADOS OU AMARGURADOS.
VOZES PASTOSAS.
DEVE LER-SE: VIIINHO...VÉLHIIINHO...
XXVI
Melhor que a mulher é o vinho
Que faz esquecer a mulher...
Que faz dum amor já velhinho
Ressurgir novo prazer.
FINALE, MUITO CATÓLICO.
XXVII
Assim termina o lamento
Pois recordar é sofrer.
Ama e fode. É bom sustento!
E por nós reza um pater.
Luiz Pacheco
Num dia em que se achou
Mais pachorrento.


domingo, 5 de maio de 2024

do peixe do rico e do peixe do pobre




No hotel, comíamos muitas vezes red fish. Cozido, nem tanto, frito em fatias finas com limão, acompanhado de arroz de tomate e, o meu preferido, assado no forno com batata à padeiro e salada de alface.
Um peixe mal amado, que as pessoas desprezam apenas porque sim.
O red fish é o exemplo acabado de como o preço final não deriva da dificuldade da obtenção do bem, mas tão somente da procura pelo mercado. É barato porque é mal amado, não é barato por saltar do mar para dentro das traineiras, que não salta.
Hoje almoçámos red fish aqui em casa. Congelado, do Lidl, a 4,89€ o quilo, já sem cabeça e amanhado. Estivesse ele inteiro e o preço rondaria os 3,60€ (a cabeça e as tripas a pesarem 25% do peixe) por quilo: pouco mais de metade do preço de venda da sardinha, a avaliar pelo que ouvi nos noticiários.
Dois rabos de peixe que custaram 3,92€ no total, alimentaram três adultos e ainda sobrou uma porção mais que suficiente para voltar a alimentar um deles hoje ao jantar ou amanhã ao almoço, que cá por casa nada se estraga. 
Foi a segunda vez que comemos red fish cá em casa. Não fazia parte do menu, como nunca fez quando vivia com os meus pais. Posso afiançar que, pelo menos a minha mãe, morreu sem alguma vez ter comido red fish.
O red fish tem uma posta firme que lasca como a do cherne ou, para conhecedores, como a do achigã, uma camada de gordura natural (não há red fish de viveiro) que evita que os lombos fiquem secos e permite tirar com facilidade a pele e tem um sabor delicado, embora presente. Sal é suficiente.
Fiz no crisp do micro ondas (uma airfrier, mas em bom). Primeiro uma cebolada com pimentão, alho e azeite, também no crisp (5 minutos), depois as batatas temperadas com sal, tomilho, alho e pimentão e os peixes por cima de tudo, apenas esfregados com sal marinho a Figueira da Foz. Dez minutos no crisp, virar o peixe e mais quinze minutos para terminar.
Ainda me lembro de quando os pescadores de Mira ofereciam na areia as cavalas que, ao engano, entravam na rede. Hoje come-se cavala nos restaurantes Michelin. E nem estou a falar no rascasso que ninguém comia e hoje é iguaria cara nem no tamboril que, há cinquenta anos, era devolvido ao mar.
O red fish não almeja chegar à mesa dos ricos, mas é uma pena que mesmo os pobres o desprezem. Se calhar mais que alguns ricos: eu só o comia no serviço e o meu patrão comia-o em casa.  
Consta que estufado em molho de caril é do katano!


sábado, 4 de maio de 2024

do Hábito

 



Na cartomante:

-Até aos quarenta anos vai sofrer imenso com falta de dinheiro.
-E depois? E depois?
-Depois habitua-se

sexta-feira, 3 de maio de 2024

do Campeonato


Restou-me virar os olhos ao chão e assumir a soberba, a arrogância e o egoísmo.
Não que mo tenham apontado, mas cabe-nos olhar para os nossos actos e medir a consequência da sua dimensão.
Cheguei à fila dos carritos para despejar o veículo onde antes repousaram meia dúzia de compras.
Era o carrito mais pequeno, o que só tem uma fila e a fila estava ocupada.
Um velho de muletas, com as muletas dentro do carro e o carro a servir de andarilho, tentava sair de marcha a ré.
Esperei sem alvoroço e, é verdade, não tinha pressa, mas a pressa é uma coisa que se ganha num simples piscar de olhos ou, porquê negar, quando diante de nós alguém aparenta ter ainda menos pressa.
E a meio do trajecto, ainda entre guias, o idoso resolve ser audaz e dar a volta ao carrito para poder sair de frente do estacionamento.
Um velho, manco, entre duas guias metálicas que confinavam o estacionamento, a ousar uma manobra perigosa.
Não tinha como correr mal.
O condutor, apesar das limitações, não era desprovido e mostrou que afinal não tinha que correr mal. O carrito passava debaixo das guias e isso permitia a manobra.
Mas o tempo escorria.
E eu a gozar o prato. Eu, que já ouço amiúde a frase "olha que não vais para novo", armado em Tarzan Taborda, deixei o homem à sua sorte. 
"O senhor precisa de ajuda?" lançou uma cidadã que passava.
Não precisava. Estugou o passou, virou a viatura e foi-se embora para superfície comercial, a manclitar acima e abaixo, agarrado ao carrito, à laia de andarilho.
Restou-me virar os olhos ao chão.
Nem por um momento pensei que ajudar aquela alma teria sido mais proveitoso para ambos ou, num exercício de auto-comiseração porque, já mo têm dito, "não vou para novo", ao menos ter-lhe perguntado se precisava de ajuda.
Somos todos uns campeões até a vida nos mostrar que não.