quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Boneca

Gabo-me de não reconhecer qualquer espécie de utilidade à auto-flagelação. Parece-me insensato perder tempo a cogitar problemas que não sabemos ainda se iremos ter ou até problemas que já temos mas para os quais não conhecemos solução. Teóricamente funciona na perfeição, mas o nosso cérebro dá-se mal com teorias e insiste em nos desviar a atenção para o abismo sempre que não o mantemos ocupado. Se tivermos qualquer coisa que remotamente nos possa apoquentar, só uma distração forçada nos inibe o apoquentanço. Tal e qual como quando temos uma ferida - tudo lá bate!
Por vezes é o próprio mundo à nossa volta que nos desperta dessa auto-comiseração e que nos abana furiosamente enquanto nos berra aos ouvidos "olha à tua volta pá!"
A Boneca é uma cadela Retriever do Labrador preta. Já não é nova; tem as bigodaças esbranquiçadas e um olhar inteligente. Move-se com passo seguro e espera pacientemente que a dona encontre um lugar no comboio para depois se aninhar entre os bancos junto dos seus pés. Às vezes (como hoje) também junto dos meus. Come biscoitos que a dona, tacteando, lhe faz chegar e atraca-se numa semi-sonolência embalada pelo movimento do comboio.
Eu vinha imerso em pensamentos nebulosos (as tais coisas da vida que nem a música abafa) e de forma quase mecânica fiz uma festa na cabeça da cadela como já anteriormente fizera. Observei o quadro à minha frente e deixei-me levar por aquela onda de cumplicidade que se desprendia da simbiose entre uma pessoa físicamente incompleta (mas com um ar extremamente feliz enquanto "lia" os emails que recebera no portátil) e um animal que, sem questionar, se entrega totalmente.
Tudo na vida é relativo e a auto-flagelação não é apenas inútil: é também estúpida e egoista.

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