terça-feira, 2 de outubro de 2012

da Paz e da pequenês



A minha tia Helena trabalhou até ser atraiçoada pela mente pois o corpo, que há muito não podia, sempre resistiu.
A minha tia Helena foi abandonada pelo marido numa época em que tal coisa era a mais suprema das humilhações e mesmo assim criou quatro filhos.
A minha tia Helena tratou da mãe até ao fim sem um queixume. E a minha avô morreu bem velhinha e em paz.
A minha tia Helena tinha com o meu pai uma relação respeitosamente afectuosa: o cunhado que lhe levou as duas filhas ao altar.
A minha tia Helena cozia broa e telefonava ao meu pai que lhe levava sardinhas ou enchidos para a rechear. E naquelas noites de Inverno eu ia vê-la junto ao forno a tirar a broa que se abria logo ali e deitava um fumo espesso e untuoso e cheirava a milho.
A minha tia Helena morreu ontem e foi hoje a enterrar sem missa porque o padre da Mealhada a considerou, apesar de católica, não praticante.
Coíbo-me de dizer do padre da Mealhada mais que isto: não tem cara de ser boa pessoa. Acho isso desde que o vi pela primeira vez.
A minha tia Helena não tinha como ser praticante: estava encarcerada pelo seu próprio discernimento e ultimamente confinada a uma cama.
A minha tia Helena não morreu em paz e um homem a quem foi confiado um papel de  apaziguamento e de conforto espiritual, negou-se a cumprir sua função, não por ser incompetente, mas por ser mau.
Conheço poucas pessoas que merecessem tanto subir em paz como merecia a minha tia Helena.

domingo, 23 de setembro de 2012

"Estou a morrer, Pedro."
"Estamos todos" era o melhor que eu conseguia produzir como resposta.
O pior é que era verdade. E o seu eu médico, a laborar em causa própria, não lhe permitia não ser lúcido.
Foi hoje.
Bateu o som do sino e a Elsa, que acerta sempre, cumpriu.
Morreu o dr. Rocha.
Subiu com o Verão e deixou-nos a chuva para mascarar as lágrimas.
Em troca, entrou-nos um Outono pela alma dentro.
É sempre antes do tempo, mas em alguns parece ser mais antes.
Descanse em paz, meu caro amigo.
Pode ser que sejamos um dia surpreendidos pelas nossas descrenças e ainda nos reste tempo para mais um dedo de conversa ao correr da eternidade.
Quem sabe...

domingo, 8 de julho de 2012

da Caridadezinha


O Lions Clube da Mealhada (Lions mesmo, não é o núcleo Sportinguista) faz um trabalho inestimável no apoio aos mais carenciados.
Um dos seus mais efectivos programas prende-se com o apoio na compra de material escolar destinado a crianças de famílias sem posses ou a passar momentos complicados, situação cada vez mais comum, mesmo no nosso concelho que felizmente nem é dos mais assolados pelo flagelo do desemprego.
O programa está aberto a quem queira participar, Lions e não Lions, e resume-se a um apoio pecuniário de cerca de cento e cinquenta euros (não tenho a certeza do valor correcto), quantia que permite apadrinhar um estudante. O dinheiro é utilizado directamente na compra de livros e outro material e o seu valor será à partida suficiente para garantir todo um ano lectivo.
Infelizmente, e porque não há almoços de borla, o organismo vê-se obrigado a organizar um lanchezinho onde patrocinadores e patrocinados acabam por se conhecer de modo a não ser perdido de vista o facto de que alguém está a dar alguma coisa a alguém.
Os patrocinados não se sentem humilhados porque quem precisa não pode dar-se a esses luxos e os patrocinadores acabam por exibir a sua bondade, sentindo-se com isso mais próximos de garantir a entrada no restrito reino dos céus.
Consta até que levam os rebentos com o intuito de lhes enrijecer a personalidade, benefício que advém do facto de conviverem com os pobrezinhos. No final, em casa, sulfatam-nos com remédio contra as pulgas e ficam como novos. Sempre fica mais barato que ir ao Badoca Park.
Para tornar a coisa ainda mais surreal, contaram-me um dia destes que há quem se tenha inscrito no programa do lado dos "caridosos" e que, com o processo já em adiantado movimento, se tenha "esquecido" de dar os trinta contos.
Recusaram-se a contar-me quem foi, mas se o objectivo era a conquista do tal lugar no céu, isso é de somenos importância: convém é terem em conta os relapsos que aparentemente lá em cima a base de dados é muito completa e que por lá tudo se sabe.

domingo, 1 de julho de 2012

do eTerno reTorno


O instagram começou por ser um app de iPhone que acrescentava efeitos às fotos.
O sucesso levou os detentores da marca a abrirem à comunidade Android e a expandirem finalmente o zingarelho para o mundo todo.
É um app realmente interessante e propõe um nunca acabar de efeitos, alguns
realmente espectaculares.
O curioso no meio disto tudo é que apesar de toda a parafernália digital, a malta acaba por vir cair aos pés do antigamente: fotos em papel.
Nasceu a camara instagram que faz tudo o que faz um smartphone: edita, envia, coloca online, mas que, à semelhança das antigas Polaroid, imprime directamente.
O sistema é ligeiramente diferente porque nas Polaroid era a própria foto que se revelava e nas instagram existe uma impressora incorporada que gasta consumíveis. Isso permite criar fotos em papel normal.
Podemos dar trezentos passos em frente, mas de vez em quando sabe bem dar dois ou três atrás.
Fixa as referências e estrutura o caminho.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

segunda-feira, 25 de junho de 2012

da Memória



Nasci numa rua de velhos.
O primeiro contacto foi adocicado: a dona Georgina que fez oitenta anos no dia em que nasci e que enquanto viveu, doze ou treze anos, sempre se lembrou de mim. Recordo um Rolls Royce Silver Ghost, mas houve mais. Era pequenina e tinha o cabelo branco, a dona Georgina.
E o "Ti" Quintas, que se sentava à porta com os braços cruzados sobre as costas da cadeira e que fumava tabaco de enrolar. Era um homem austero, o "Ti" Quintas, que ameaçava cortar com uma navalha as bolas que lhe fossem cair à horta. Nunca cortou nenhuma... O meu pai sempre me disse que ele era um bom homem, mas pelo sim pelo não nunca me aproximei muito.
Numa ponta da rua vivia o professor Armindo que era alto e como tinha os pés pequeninos caminhava de uma forma engraçada. Consta que era mau quando leccionava, mas a mim nunca me assustou: sempre o estimei. Na ponta oposta vivia o senhor Machado. O senhor Machado era o gerente do banco. Uma figura inacessível, amigo do meu pai, mas de quem se guardava uma prudente e saudável distância, nunca soube bem porquê. O sr Machado era casado com a dona Elisiária, o correspondente em português à madame Hyacinth Bucket (pronuncia-se bouquet) da serie "Keeping the Appearences" que a BBC criou anos mais tarde.
Em frente vivia o senhor Pompeu que era latoeiro. E bombeiro. Lado a lado com o senhor Manuel Luis, sapateiro e orgulhoso progenitor do Rui, guarda-redes, uma velha glória do Futebol Clube do Porto. Foi o meu sapateiro até ao dia em que me aconselhou a mudar por já não ter a destreza de outrora. Trabalhava com o radio ligado e tinha cartazes do F.C.P. nas paredes. E quando as mãos lhe começaram a tremer, pedia-me que o ajudasse a abrir buracos com o berbequim nos saltos dos sapatos das senhoras para encaixar as capas.
E lembro-me vagamente do sr Oliveira que tinha um Opel dos anos quarenta onde se passeava ao Domingo com a dona Ermelinda. E do portão da casa deles que tinha um arame que fazia tocar um sino.
E da senhora Alzira Coleta, e da dona Angela, e do senhor David, e da Ti Sara, e do senhor José Adelino, e da dona Isabel que também fazia anos no mesmo dia que eu (e que também nunca se esquecia) e da Cilinha que era professora e casou (muito) tardiamente com o senhor doutor que tinha um Volvo amarelo e era surdo.
A minha rua sempre teve velhos e quase sempre velhos sentados à porta. O último foi o senhor Francisco que esteve muitos anos no Brasil e que me cumprimentava sempre com um "Oi, tudo jóia?".
O senhor Francisco subiu ontem à noite e foi juntar-se à constelação da rua dos viscondes. Era tio do Zé Mota, grande amigo de infância que, tal como eu, teima em não arredar pé daqui.
Resta-nos a possibilidade de envelhecer: com ou sem cadeira à porta.