terça-feira, 29 de janeiro de 2013

do Equilíbrio - Melhor; da diferença entre teimosia e lucidez.


-Bom dia senhor professor.
-Bom dia, senhor Pedro. E olhe que o dia hoje está bonito.
-Está bom para um passeio.
-Para quem pode...
-O senhor pode. Tem é que arranjar uma bengala em vez do guarda-chuva; um dia destes espalha-se...
-Bengala não. Bengala é sinal de velhice!

O professor Pedro Duarte é residente no hotel há mais de dois anos. Começou por passar temporadas, mas depois acabou por ficar.
Esteve acamado desde o dia onze de Novembro até há meia duzia de dias atrás como resultado de uma queda que lhe provocou uma mialgia de esforço na perna esquerda.
Já no Inverno de 2011 tinha sido operado à prostata e fez a recuperação toda no hotel. Sem ajudas.
É um homem rijo, seco, que não deve pesar mais que cinquenta quilos, apesar de ser relativamente alto.
O professor Pedro Duarte acha que bengala é sinal de velhice.
O professor Pedro Duarte vai fazer no próximo dia vinte e oito de Agosto, oitenta e cinco anos.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Uma cóboiada das antigas, mas desta vez a sério.


Sabia-se que Tarantino acabaria, mais cedo ou mais tarde, por bater no tecto.
Django Unchained (libertado, na versão portuguesa) é realmente um hino ao cinema.
Um hino ao cinema enquanto arte, enquanto entretenimento, enquanto agregação de memórias.
É um filme brutal, carregado de simbolismo, carregado de cinema, carregado daquilo que faz o cinema e que faz aquilo que são as pessoas que gostam de cinema.
Nem por um momento nos conseguimos esquecer que estamos perante um Tarantino, mas basta darmos um pontapé numa pedra para encontrarmos, sem esforço um dos Sergios que transformaram em arte as cóboiadas feitas em Italia ou nas planícies de Almeria.
Mas desta vez Quentin Tarantino foi mais longe ao ponto de ser preciso trabalhar um bocado para se conseguir encontrar em toda a história do cinema um retrato tão fiel da época pré guerra de secessão. Um retrato cru e rigoroso do ambiente que se vivia nos campos de algodão do sul dos Estados Unidos.
Juro que no final esperava uma saída em direcção ao pôr do sol ao som do mais ausente dos presentes, Ennio Morricone, mas até aí fui surpreendido.
A gargalhada final dá-se ao som da música de Trinitá, o cow-boy insolente.
É um aperto no coração.
E nem sequer falei na história ou nos desempenhos fabulosos de Christoph Waltz e Samuel L Jackson, isto para começar, porque se entramos por aqui só paramos nos Oscars.
Grande filme.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Como morrer sem stress, guia prático ilustrado.


Surreal.
Aterrei na SIC Radical num programa onde se estavam a abater (??????) cordeiros
num estúdio de televisão ao vivo.
A apresentadora, a falar baixinho e pausadamente para a plateia, explica que os técnicos que vão fazer o abate são experientes e competentes e que vão fazer o serviço de modo a que os borregos morram o mais humanamente (sic) possível. Claro que não explica o que quer dizer "morrer humanamente", mas também não sei se quero saber.
O processo inicia-se com o técnico a explicar que o primeiro borrego vai levar um choque de alta voltagem que o vai deixar atordoado para não sofrer. Infelizmente esquecem-se de informar o bicho e este leva o choque e, ao invés de ficar atordoado, foge pela sala fora com o técnico experiente a correr atrás dele enquanto um outro técnico explica que provavelmente a máquina dos choques não funcionou.
Apanhado o infeliz, e já sob a supervisão do veterinário que se assegura que o bicho,  um bebé que levou um choque e foi agarrado por dois técnicos dez vezes maiores que ele, não está em stress, vão buscar uma pistola e espetam-lhe um balázio na moleirinha que o deverá matar.
Mais uma vez se esquecem de fazer um briefing com o animal porque, apesar do técnico garantir à apresentadora que desta vez está morto, esperneia que nem um condenado enquanto o penduram de cabeça para baixo e lhe abrem as goelas com uma faca para que se esvaia em paz e sem stress.
Quando desliguei a televisão, enojado, o desgraçado já tinha despejado umas boas golfadas de sangue e, apesar de atordoado e morto, ainda esperneava.
Mas este tipo de programas interessa exactamente a quem?   

Há quem diga, e bem, que somos resto dos que ficaram.



Consta que fomos, mas que já não somos.
Consta que o que somos não é nada do que fomos.
Se foram audazes os que em tempos foram,
Com eles iam a semente e o arrojo.
E porque nós ficámos, acabámos orfãos.
Recolhidos à sorte do conforto;
Do nada.

E se hoje é dolorosa a ida,
Será talvez resiliente a espera.

O conforto do aguardo,
É novamente o nada.

Se quem parte sofre, sofre quem fica.
Se para partir é necessário peito...

Se para ficar a arte de esperar por ontem.

Não se sabe audaz quem vai,
Se mais tenaz quem fica.
No aguardo...



quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Da necessidade de colocar sempre as coisas em perspectiva ou como dizia o Peter Gabriel "if looks could kill, they probably will"


Compro meias duas vezes por ano.
Sempre no Verão, sempre no Inverno e praticamente sempre no comércio tradicional.
Hoje é Inverno e fui às meias.
Fui à Baixa, fui enganado na Briosa porque me venderam um folhado de Chaves que veio a pé de lá e começou a caminhada, quase de certeza, antes do Natal- não merecia, sou cliente habitual e dos que compram pastéis às caixas - e mesmo tendo sido enganado e tendo reclamado ainda comprei uma caixinha de Nevadas que essas sim, essas mesmo que venham a pé é de Penacova que, convenhamos, além de mais perto é sempre a descer.
Entre a Briosa e as meias encontrei músicos e dei asas ao meu lado filantrópico: ao mecenato do nível que me posso permitir. Distribuí moedas...quis o destino que só tivesse das grandes.
Chegado às meias. Lindas. De lã para manter os pés quentinhos (deitar em lençois lavados e calçar meias de lá novas são dois prazeres igualmente bons e igualmente reminiscentes, quase viagens à infância, ao colo). Comprei quatro pares com vinte e cinco por cento de desconto. Vou andar com um pé gratuito…
Paguei em dinheiro (mais ou menos) vivo e faltou-me uma moeda para facilitar o troco.
"Desculpe, mas dei as moedas todas aos músicos. Também trabalham e têm direito...".
"Isso é verdade e respeito-os, mas podiam ter um repertório mais variado. O senhor já viu a estafa que é estar aqui uma tarde inteira a ouvir sempre as mesmas três músicas? Uma pessoa cansa-se. Ainda se houvesse clientes…”.
Foi aí que se me fez luz e me preencheu a memória a senhora da loja em frente ao Millennium a quem quase agredira com os olhos momentos antes.
A senhora que, de caneta em riste, saiu porta fora, vermelha, e pediu ao rapaz do saxofone que se calasse um bocadinho ou que mudasse de sítio. Chovia e eu estava abrigado ali ao lado, deliciado com um solo de free jazz extraído com o que me pareceu competência, de um saxofone preto e cromado e que, poderia jurar, tinha mais botões que o costume. E como o rapaz do saxofone fazia render os dois euros que lhe tinha posto na caixa, senti-me roubado por quem o mandava calar.
Baixei os olhos que antes tinham literalmente esfaqueado a senhora que só queria fazer o inventário com a cabeça sossegadinha e segui prás meias a pensar no quanto a nossa sociedade estava a ficar irritadiça.
Afinal não.
A moça das meias é menina para ter razão.

domingo, 6 de janeiro de 2013

De como um arrazoado de inutilidades pode ter, afinal, algum sentido


Não me custa nada ser pobre, exceptuando talvez a chatice que é a sensação de não ter dinheiro.
Tirando o acima exposto, ser pobre não é pior hoje do que sempre foi.
Mau mesmo é pensar à pobre, coisa que nem os pobres fazem.
Mau mesmo é pensar que o amanhã não tem como ser melhor que o hoje.
E eu hoje, tenho que concordar comigo, tendo a pensar à pobre.
Continuo a fazer o que sempre fiz. Vivo abaixo das minhas reais possibilidades e sinto-me, como aliás sempre me senti, perfeitamente confortável com isso.
O que me causa urticária é o incómodo de saber que alguém, algures, se convenceu que é importante eu ser pobre para que a área geográfica alargada onde me inseriram consiga garantir a um grupo de privilegiados que continuem a ser privilegiados - Sou pobre mas por razões financeiras e não doutrinárias, principalmente se forem razões doutrinárias ditadas por outrém.
Dificilmente conseguiria ser comunista, daqueles à antiga, enclausurado do lado de lá da cortina de ferro. Só a uma entidade permito que me mande poupar: à minha carteira.
Não tenho raiva, apenas inveja, de quem tem mais que eu. A inveja é para muitos um catalizador - uma mola impulsionadora. Para mim é uma merda: gostava de ter o que fulano tem, mas não me apetece ter o trabalho necessário à sua obtenção. Daí que aprecie, de coração aberto, quem tem sonhos e tudo faz para os concretizar. Quem luta com ardor e com a razão do seu lado, merece o meu mais profundo respeito e a minha mais prolongada admiração. É essa a minha inveja.
É que há pobres que me causam esta minha peculiar inveja...
Ser pobre sim, mas por força das circunstâncias. Jamais por força da doutrina.
A doutrina que nos põe a pensar à pobre, coisa que nem os pobres fazem.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

My name is Can, Ameri Can.



Os primeiros comentários fizeram-me ficar de pé atrás, não o posso negar.
"Provavelmente o melhor Bond de sempre"
"Skyfall é o melhor filme da saga 007"
Desde que gastei dinheiro num bilhete de cinema para ver o "Festim Nu" do David Cronemberg (Naked Lunch no original) e só vi gente vestida que me habituei a desconfiar dos críticos de cinema, sejam eles assumidos ou curiosos.
E mais uma vez confirmei a minha teoria.
Skyfall é um excelente, repito, excelente, filme de acção.
Americano.
Skyfall é um excelente filme de acção americano.
Tem um "artista" com ar reguila que se farta de correr embora diga entre dentes "já não tenho idade para estas coisas" e transpire que nem uma chaleira a fazer lembrar a nova moda americana de pôr velhos à porrada nos filmes. Tem uma cena de sexo fugidia com o que parece ser uma prostituta num bairro pobre e outra cena de sexo, ainda mais fugidia com uma prostituta macaense assumida. Tem porrada à americana que envolve correntes de ferro e onde o "artista" leva mais vezes do que dá. Tem facas (???????). Tem uma reviravolta algures durante a história. Tem um enredo e tem um final de típico filme de acção americano: um mano a mano onde o resto do mundo ficou para trás e apenas os dois "artistas", o bom e o mau, se degladiam. Nas palavras dos próprios, "The last two rats". Claro que aí aperceberam-se que a coisa estava a ficar muito "cliché" e obviaram o mano a mano: quando ficaram só os dois em condições de funcionalidade, um mata o outro pelas costas sem mais delongas.
Tivessem posto o nome de Freddy ao "artista" e tivessem dado maior enfase ao facto de Kincaid ter chamado Emma a "M" e ninguém se aperceberia que se tratava de um "double 0 seven movie."
Ah! E o David Brown 5 que mais valia terem deixado na garagem, se era para o espatifarem - mais uma americanice.
Javier Bardem deu a credibilidade necessária a um vilão que se preze, além de um tique de modernidade ou "political correctness" (vejam o filme para compreenderem este ultimo comentário). Pese embora o facto de no livro que deu origem ao filme de 1974, "O homem da pistola dourada", Ian Fleming já ter aflorado esse tema ao descrever Scaramanga. O tema? Vejam o filme (o Skyfall) e aquela que poderia ter sido a terceira cena de sexo.  
Finalmente revelo o porquê de tanta gente dizer que este é que é o melhor filme da saga: este filme enche as medidas a quem tem saudades de quando se andava no carro sem cinto de segurança, de quando os brinquedos eram pintados com tintas toxicas e soltavam peças capazes de sufocar um elefante em segundos, numa palavra, pessoas que sabem a relação que existe entre uma esferográfica e uma cassete.
E porquê?
Porque este filme começa com um hardrive e acaba com uma facada nas costas no meio do nada, sem água potável nem luz. Porque este filme prova que, apesar da tecnologia, "é sempre preciso alguém para apertar o gatilho" nas palavras do "artista" ou atirar a faca, acrescento eu...

Quanto ao que eu penso do James Bond, está aqui o que eu penso.
    

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Treze


Acabei de despir o casaco mais pesado que alguma vez carreguei.
Carreguei-o durante um ano e senti cada dia que com ele andei vestido.
Dois mil e doze foi o meu ano do estupor.
As vértebras da minha alma ficaram irremediavelmente pisadas sob a pressão do peso das pedras que o rancor me foi diariamente colocando nos bolsos.
Transporto comigo marcas que tempo nenhum conseguirá apagar. Foi dois mil e doze que me ensinou a conter a raiva. Uma coisa fria e dolorosa que se instala nos terminais da dor e só passa quando se dá um chuto no balde.
Em dois mil e doze ruiu o único plano que tive na vida. Não foi a vida porque essa não se planeia. Deixa-se empurrar ao sabor dos sonhos e das oportunidades – nunca à força de planos, passo primeiro para o dissabor.
Da minha vida não me queixo. O essencial, tenho-o em dose suficiente e se não me considero feliz é apenas porque não entrego à minha felicidade o protagonismo que ela me quer diariamente exigir. Prefiro apostar na felicidade terceira.
O ano de dois mil e doze foi o ano do estupor para o meu plano de quase vinte anos. Um plano de realização profissional que construí e guardei em caixinhas de suportada resiliência à espera de um dia lhe poder dar a luz do sol.
Ruiu em dois mil e doze.
Hoje não tenho plano. Permiti-me utilizar todo o ano que findou para digerir o estupor – a admiração. Aquela reacção aparvalhada de levar um murro sem contar e olhar em volta à procura do autor.
Hoje, um de Janeiro de dois mil e treze, não tenho plano: tenho a vida. A tal que se deve empurrar ao sabor dos sonhos e das oportunidades.
Nada será como dantes, excepto o quotidiano.