quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

ainda o Natal


Sinto-me mais confortável a dar que a receber.
Dar é fácil.
Dar é, habitualmente, fácil.
Dá-se e pronto - já está.
A partir daí, podemos passar o resto da vida a duvidar do grau de autenticidade do agradecimento, mas está cumprido o nosso papel.
Receber implica demonstrações de sentimento. O que se dá é em si uma mensagem ao passo que o que se recebe deve despoletar um gesto que se quer límpido, natural e sincero.
Quem dá, passa a bola.
Quem recebe tem que sair a jogar...

domingo, 22 de dezembro de 2013

mais 1 conto de Natal




Serafim Cardoso era rico e morreu na cama na noite de Natal.
Sozinho.
O corpo foi encontrado, teso e frio, passava das onze da manhã do dia seguinte, pelo último empregado que ainda se mantinha ao seu serviço.
Ao serviçal, homem de pouquíssimas falas, ainda restaram lágrimas para derramar pela memória do patrão. Consta que chorou copiosamente, para espanto de quantos, poucos, assistiram ao funeral.
A família, três sobrinhos e uma irmã solteira, apresentaram-se na semana seguinte para tomarem posse do rico pecúlio que Serafim, industrial de mineração com prospecções em Africa, possuía.
O último serviçal, homem de poucas falas, respeitoso e respeitado, ofereceu café aos presentes enlutados e endereçou pêsames a quem não vira no funeral – todos.
O mais velho dos sobrinhos, advogado de província, com uma carteira de clientes restrita, porque diminuta, era o mais nervoso de todos.
“Antero, afinal onde está o advogado do tio? Daqui a pouco é noite e ainda tenho que fazer.”
O serviçal de poucas falas acrescentou apenas, impávido, que não haveria advogado. Tão pouco existia testamento ou bens para dividir.
Ao espanto inicial, seguiu-se uma acesa troca de palavras que, a avaliar pelo ruído que se ouviu nas redondezas, atingiu picos de tensão.
O serviçal, Antero, entregou a cada um uma carta fechada com o seu nome escrito na letra inconfundível do tio Serafim e um borrão de lacre com o selo e o nome de família.
Abertos os envelopes, novo momento de discussão.
“Um carro! Mas eu não quero o carro para nada…”
Um carro, um utilitário velho, para ser vendido e o resultado da venda dividido pelos herdeiros – era essa a herança.
Anexava um documento devidamente atestado pela firma de advogados que explicava o destino dado aos milhões de Serafim Cardoso, incluindo a casa e todos os terrenos.
Serafim Cardoso fora rico, mas morreu pobre… tinha torrado toda a sua fortuna.
A família enlutada abandonou a casa que lhes pareceu ainda mais sombria do que antes, não sem antes desejarem à alma do falecido um descanso sobressaltado por dores e penas imensas.
Antero, o serviçal que era homem de poucas palavras, sentou-se no sofá, aconchegou a lenha  na lareira, acendeu um charuto – dos do patrão – e tirou um envelope do bolso da casaca.
“Caro Antero,
Se estás a ler este documento é porque as coisas correram conforme previsto. Ficaste sozinho após a leitura do testamento.
Começo por te pedir desculpa, amigo sincero de tantos anos, por te ter deixado de fora deste esquema, mas isto envolvia alguma maldade e tu, meu fiel servidor, não sabes o que isso é.
Na garagem está estacionado o meu carro utilitário que, por ninguém o querer, agora é teu.
Na bagageira do carro está um saco com várias pastas. Cada pasta tem documentos respeitantes a investimentos que tenho, incluindo, em cada uma delas, uma procuração que confere ao seu portador a possibilidade de poder vender a totalidade dos bens que a essa pasta dizem respeito. Está tudo delineado na maior das legalidades de modo a que ninguém possa pôr em causa os negócios.
A tua última função será a de entregares cada uma das pastas às instituições que constam da lista anexa a esta carta. Depois disso ficas livre.
Na pasta que tem o teu nome vais encontrar um pequeno pecúlio que te permitirá viver de forma honesta e desafogada até ao fim dos teus dias.
Desejo-te uma vida longa e próspera.”
Antero, o serviçal de poucas falas, recostou-se no sofá, tirou duas baforadas do charuto e deu uma gargalhada sonora: “Que belo conto de Natal!” foi o que pensou.
De seguida levantou-se, atirou a carta e a lista das instituições para o lume, dirigiu-se à garagem, abriu a bagageira do utilitário, conferiu as pastas, fechou tudo, meteu-se no carro e desapareceu.
Nunca mais se ouviu falar de tal pessoa…

sábado, 20 de julho de 2013

Quinto

Imagem do artista enquanto jovem

No dia 19 de Julho de 2008 houve gala das Quatro Maravilhas da Mesa da Mealhada.
Armada a barraca em frente ao Teatro Municipal Messias, serviu-se leitão e espumante a um grupo, à época, ainda restrito de comensais.
Não fui à festa, apesar de convidado.
A memória não me permite garantir se ainda ponderei e depois mudei de ideias ou se simplesmente assumi não ir, mas a verdade é que saí de casa, a pé, e acabei sentado na esplanada dos Amigos d'Alex a iniciar uma noite que mudou radicalmente a minha vida.
Há partes nebulosas neste episódio e dou por mim a dada altura em amena cavaqueira com o Menino Mota, pesaroso e enraivecido porque, pela primeira vez na sua vida, a Mealhada lhe tinha vedado a entrada num evento. E para mais com leitão...
Fiquei furioso e a primeira reacção foi "Queres lá ir? Vamos lá e entras comigo.", mas não quis.
Não insisti e acabámos por estagiar por ali. Não havia leitão, mas houve uma Sumol e uma sandes de fiambre e muita conversa.
E o desejo do Menino de aparecer na internet.
Na internet.
A coisa passou-se, o Menino recolheu ao lar e eu estendi-me até ser já Domingo.
Chegado a casa, de madrugada, sentei-me ao computador e nasceu o Chacomporradas.
Vinte de Julho de dois mil e oito, faz hoje cinco anos.
O primeiro post foi este.
O Chacomporradas teve, e ainda hoje tem, uma importância fulcral na minha vida.
Proporcionou-me alguns momentos de subido prazer de escrita e proporciona-me actualmente momentos de subido prazer de leitura.
É um amigo. Uma companhia onde regresso amiúde em busca de conforto.
O Chacomporradas é datado, é temporal, mas é universal e, na esmagadora maioria dos seus posts, é um produto original. É uma obra que me orgulha.
Está em periodo sabático, mas tenho a garantia (é tão bom ter garantias) que basta dar à chave para de novo se iluminar e começar a distribuir luz.
Feliz aniversário, velho amigo. 

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Pergunta de algibeira



Se o senhor da foto não fosse candidato a uma autarquia nas eleições de Outubro próximo, será que faria o comentário que fez hoje ao Ministro das Finanças?

felicidade



Uma referência das antigas.
Vi-o ontem na RTP e adorei revisitar as ideias, as teorias e as alucinações.
A última vez tinha sido no Pessoal e Transmissível do Carlos Vaz Marques.
É um homem feliz.
Ainda mais.

domingo, 5 de maio de 2013

da eterna busca pelos caminhos torcidos que conduzem à felicidade



Hoje é dia de cortejo da Queima das Fitas em Coimbra.
Dia de excessos, dia de contestação, dia de celebração e festejo. De orgulho, de libertação, dia grande.
Hoje, como em tempos foi, é novamente difícil obter um grau académico. Não apenas pela dificuldade inerente ao estudo, mas acima de tudo pelo esforço exigido às famílias.
Hoje, e isso nunca assim foi, além do esforço necessário à prossecução da carreira académica, é imperativo lidar com a maior das incertezas: um futuro recheado de portas fechadas.
Salvaguardando as pouquíssimas excepções, esta geração altamente treinada debate-se com o resultado das suas próprias competências: o excesso de oferta.
O excesso de oferta não é conjuntural. O excesso de oferta é o que permite à procura poder escolher os melhores e com isso evoluir e criar valor. Abrir caminhos para o futuro.
Chegados aqui, eis-nos em cima da linha que delimita os paradigmas. Se antes só estudava quem podia e isso era garantia de pleno emprego, hoje todos podem estudar e a garantia é nula.
Mas há uma coisa que não é nula: o conhecimento. O conhecimento estrutura a personalidade e queima etapas no desenvolvimento futuro. O conhecimento predispõe para mais conhecimento e conhecimento é poder. Conhecimento é liberdade.
Quando acabei o décimo segundo ano, o meu caminho estava traçado. Cursaria linguas e há trinta anos atrás isso significava apenas uma coisa: ser professor. A primeira carreira que despontou para o fenómeno do desemprego. Aquilo que fazia soar os alarmes já nos idos do meio dos anos oitenta. Ser professor era marchar em direcção ao abismo.
O preconceito venceu. Estudei gestão hoteleira, mas realizo-me a leccionar. E julgo, modéstia à parte, que sou melhor formador que hoteleiro.
Torceu-se o percurso, mas o resultado acabou por aparecer.
E é isso que me faz estar aqui, hoje, a ver os estudantes subirem a colina e a pensar em como às vezes, as grandes crises podem parir novos paradigmas.
Hoje, e porque a realidade acabou com a violência de se escolher um curso primeiro pela saída profissional e só depois, às vezes muito depois, pelo prazer, pelo que se gosta. Hoje, desejo que o futuro do mundo passe primeiro pelo prazer de se aprender, pelo prazer de se fazer o que se gosta, pelo encerrar do ciclo com base na felicidade própria e na construção estruturada do caracter.
Já que nada dá garantias de nada, tudo é garantido. Logo, escolham o que vos der prazer.
Utilizando uma figura muito querida aos treinadores de futebol, vão lá para dentro e divirtam-se.
Os resultados acabarão por aparecer.
E convém nunca perder de vista a ideia de que temos a vida toda para sermos infelizes - ou não!

segunda-feira, 25 de março de 2013

Diminuir a bitola...


Comuniquei ontem à família e passo agora a oficializar.
Deixei de fumar.
Estou aos poucos a tornar-me um homem grande, responsável, se for preferível o epíteto.
Vou guardar religiosamente o "humidor" com os charutos que me restam, mimá-los, mudar-lhes a água, controlar-lhes a humidade de modo a que durem tanto como eu, pelo menos. Devo-lhes esse respeito. É sabido que um charuto, desde que devidamente mantido, pode durar décadas.
Se o meu filho um dia decidir fumar charutos, deixo-lhe em tabaco um pequeno legado que já hoje vale umas largas dezenas de euros, talvez centenas.
Nunca fui viciado. Fumei sempre por prazer e tirei prazer da esmagadora maioria dos charutos que fumei na vida.
Sem premeditação, acabei por me aperceber que, de forma natural, comecei a fumar cada vez mais espaçadamente.
Um charuto é, mais que um prazer, uma experiência sensorial. Um gozo intelectual.
Fumei-os sempre a valerem por si só e por si só valeram tudo o que esperei que me proporcionassem.
"O excesso de gozo é dor" disse um dia Barbosa du Bocage e por aí me encaminhava.
Hoje, fumar um charuto apressa-me o batimento cardíaco, provoca-me desconforto no estômago, aumenta-me de imediato a tensão arterial e, mesmo que seja fumado de manhã, diminui-me a qualidade do sono. Até o sabor na boca na manhã seguinte incomoda mais que antes.
O incómodo começa a atingir o mesmo patamar do prazer e não me posso permitir que isso aconteça ou, parafraseando o grande Keith Floyd, "I'm sick and tired of waking up sick and tired."
Vou fechando algumas alas do castelo para que as outras possam manter-se em melhor estado.
Estou a envelhecer e sinto-me perfeitamente confortável com isso.
Fumei um bom punhado de marcas e, porque tenho que ser criterioso, um grande bem-haja ao sr Alexandre Dumas que escreveu o Conde de Montecristo, ao som da leitura do qual foram enrolados os mais fantásticos charutos que tive o prazer de fumar, um aceno de saudade a William Shakespeare por ter emprestado o nome da sua mais afamada história de amor aos charutos mais elegantes que fumei, uma vénia aos irmãos Quintero que me permitiram fumar tabaco cubano a preços menos escandalosos e um muito especial agradecimento à minha mulher que me ofereceu, se não todos, praticamente todos os Cohibas que com subida honra acendi.
Agora, em frente, que atrás vem gente...
   

domingo, 17 de março de 2013

da Superação



Ouvi hoje uma história de amor a uma causa, de abnegação, de superação, de transcendência, enfim, de puro altruísmo.
Foi-me contada na segunda pessoa, mas tive o prazer de momentos antes ter conhecido o protagonista.
Um treinador de uma modalidade individual amadora de desporto olímpico, agarrou uma atleta grande do nosso país pouco tempo depois do seu treinador ter morrido.
Criou os laços comuns que quem já viu o lado mais pessoal dos atletas sabe que existem, cimentou esses laços e preparou-se para qualificar a atleta para uma olimpíada.
Nesse interim, sofre um acidente de mota que lhe deixa uma das pernas bastante danificada e a necessitar de várias cirurgias para poder um dia voltar à sua função.
Entre o processo de recuperação e o acompanhamento da sua pupila, opta pelo segundo cenário e entrega-se, com grande esforço pessoal e em provado sofrimento ao seu objectivo.
A atleta qualifica-se para a olimpiada e o treinador atrasa mais uma vez as suas cirurgias. Desloca-se de muletas e tudo indica que tem dores.
Dois dias antes de uma das provas, morre-lhe a mãe, desloca-se a Portugal para o funeral, não sem antes prometer à sua pupila, ainda uma menina, que lá estará para a apoiar e para garantir que todo o trabalho anterior não terá sido em vão.
E no dia da prova ei-lo no seu local de trabalho.
Finda a olimpiada, não me interessou saber se houve ou não medalha, penso que sim, regressa a casa e começa o seu calvário.
A sua decisão de adiar a cirurgia deixou-lhe a perna mais curta e inicia um lento e penoso processo de estiramento dos músculos de forma mecânica e gradual. É-lhe implantado um aparato metálico que substitui temporariamente o osso esmagado e que estabiliza o membro.
Hoje continua de muletas e, embora já não seja treinador e esteja de baixa enquanto seleccionador da modalidade, acompanha as provas que se realizam. Coube a sorte a Coimbra este fim de semana.
Falta-lhe mais uma bateria de cirurgias, entre elas a de remoção do tal aparato de ferro que levará ao corte de um tendão que, caso não corra como previsto, lhe tirará de vez a possibilidade de voltar a andar normalmente. 
Tudo por amor à sua arte.
Avassalador.        

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Horsepower...



Há duas coisa que não como: lampreia e coelho. Poderia falar de fígado, mas não seria honesto porque consumo pastas e enchidos que levam fígado. Só não como fígado simples, logo, não conta.
Se me oferecerem um pedaço de, vamos supor, empada de peixe, eu provo e, se gostar, como. Se me disserem a seguir que é de lampreia, limitar-me-ei a dizer que é bom e que afinal do que não gosto é de lampreia como já comi antes - com arroz. E o mais certo é comer empada de lampreia daí em diante. Arrisco até dizer que poderei voltar a tentar o arroz.
Se me fizerem o mesmo teste com coelho, provavelmente acharei delicioso, mas depois de saber a verdade, recusar-me-ei a comer mais. Ficarei até constrangido.
Porquê?
Porque de lampreia não gosto do sabor e coelho não como por preconceito. Não me consigo ver a comer o animal: é superior a mim.
Passa-se o mesmo com a questão da carne de cavalo incorporada em produtos de carne de vaca.
Se colocarem, sem informar, perú numa empada de galinha ou pedaços de frango misturados num arroz de pato, poderá considerar-se que existe adulteração do produto e os consumidores têm o direito de se sentir enganados, mas difcilmente isso criará problemas de maior. Em termos legais é adulteração, mas não há preconceito.
Tendo sempre como ponto de partida a certeza de que a carne de cavalo incorporada nos produtos em apreço reúne todos os requisitos previstos na lei como necessários para ser considerada apta para a alimentação humana, o problema resume-se à informação prestada.
A carne de cavalo é utilizada em muitos países na alimentação humana e Portugal não é diferente: existem até talhos especializadas na sua comercialização. É o que os americanos apelidam de GRAS, sigla de "generally reported as safe".
Legalmente, do rótulo de um produto alimentar composto deve constar, entre outras coisas, a lista dos ingredientes nele incorporados. Por esta ordem de ideias, e mantendo a premissa da salvaguarda da saúde pública e da respectiva rastreabilidade dos ingredientes, uma lasagna de de cavalo é um produto tão bom para o consumo humano como é uma lasagna de vaca ou como uma lasagna de porco. Desde que a informação conste dos ingredientes, está legal.
É aí que entra o preconceito.
Mesmo com todos os aspectos legais assegurados, manda o preconceito que a menção à existência de um produto incorporado que não seja consensual, tenha direito a chamada de atenção na embalagem.
Assim, mais do que destruir alimentos perfeitamente sãos ou, pior ainda, supor que são bons para os pobrezinhos, porque não colocar bem visível a informação de que têm incorporada carne de cavalo e deixar aos produtores e principalmente aos consumidores a possibilidade de decidirem o seu destino: as prateleiras dos supermercado, as latinhas de Pedigree Pal ou a incineradora.
Não há-de demorar muito tempo para que estes preconceitos sejam vencidos pela escassez de produção que, à falta de alternativa, nos colocará na boca um conjunto de coisas altamente nutritivas que hoje consideramos hediondas como sejam insectos, larvas ou roedores.
Quanto à questão do ministro alemão que queria dar as lasagnas aos pobres, coloco-a na prateleira dos lugares atrás dos postes no estádio de Alvalade que alguém pretendia oferecer aos invisuais: uma coisa a repensar.
O andar do mundo vai-nos fazer cair os preconceitos um a um...   

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

do Equilíbrio - Melhor; da diferença entre teimosia e lucidez.


-Bom dia senhor professor.
-Bom dia, senhor Pedro. E olhe que o dia hoje está bonito.
-Está bom para um passeio.
-Para quem pode...
-O senhor pode. Tem é que arranjar uma bengala em vez do guarda-chuva; um dia destes espalha-se...
-Bengala não. Bengala é sinal de velhice!

O professor Pedro Duarte é residente no hotel há mais de dois anos. Começou por passar temporadas, mas depois acabou por ficar.
Esteve acamado desde o dia onze de Novembro até há meia duzia de dias atrás como resultado de uma queda que lhe provocou uma mialgia de esforço na perna esquerda.
Já no Inverno de 2011 tinha sido operado à prostata e fez a recuperação toda no hotel. Sem ajudas.
É um homem rijo, seco, que não deve pesar mais que cinquenta quilos, apesar de ser relativamente alto.
O professor Pedro Duarte acha que bengala é sinal de velhice.
O professor Pedro Duarte vai fazer no próximo dia vinte e oito de Agosto, oitenta e cinco anos.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Uma cóboiada das antigas, mas desta vez a sério.


Sabia-se que Tarantino acabaria, mais cedo ou mais tarde, por bater no tecto.
Django Unchained (libertado, na versão portuguesa) é realmente um hino ao cinema.
Um hino ao cinema enquanto arte, enquanto entretenimento, enquanto agregação de memórias.
É um filme brutal, carregado de simbolismo, carregado de cinema, carregado daquilo que faz o cinema e que faz aquilo que são as pessoas que gostam de cinema.
Nem por um momento nos conseguimos esquecer que estamos perante um Tarantino, mas basta darmos um pontapé numa pedra para encontrarmos, sem esforço um dos Sergios que transformaram em arte as cóboiadas feitas em Italia ou nas planícies de Almeria.
Mas desta vez Quentin Tarantino foi mais longe ao ponto de ser preciso trabalhar um bocado para se conseguir encontrar em toda a história do cinema um retrato tão fiel da época pré guerra de secessão. Um retrato cru e rigoroso do ambiente que se vivia nos campos de algodão do sul dos Estados Unidos.
Juro que no final esperava uma saída em direcção ao pôr do sol ao som do mais ausente dos presentes, Ennio Morricone, mas até aí fui surpreendido.
A gargalhada final dá-se ao som da música de Trinitá, o cow-boy insolente.
É um aperto no coração.
E nem sequer falei na história ou nos desempenhos fabulosos de Christoph Waltz e Samuel L Jackson, isto para começar, porque se entramos por aqui só paramos nos Oscars.
Grande filme.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Como morrer sem stress, guia prático ilustrado.


Surreal.
Aterrei na SIC Radical num programa onde se estavam a abater (??????) cordeiros
num estúdio de televisão ao vivo.
A apresentadora, a falar baixinho e pausadamente para a plateia, explica que os técnicos que vão fazer o abate são experientes e competentes e que vão fazer o serviço de modo a que os borregos morram o mais humanamente (sic) possível. Claro que não explica o que quer dizer "morrer humanamente", mas também não sei se quero saber.
O processo inicia-se com o técnico a explicar que o primeiro borrego vai levar um choque de alta voltagem que o vai deixar atordoado para não sofrer. Infelizmente esquecem-se de informar o bicho e este leva o choque e, ao invés de ficar atordoado, foge pela sala fora com o técnico experiente a correr atrás dele enquanto um outro técnico explica que provavelmente a máquina dos choques não funcionou.
Apanhado o infeliz, e já sob a supervisão do veterinário que se assegura que o bicho,  um bebé que levou um choque e foi agarrado por dois técnicos dez vezes maiores que ele, não está em stress, vão buscar uma pistola e espetam-lhe um balázio na moleirinha que o deverá matar.
Mais uma vez se esquecem de fazer um briefing com o animal porque, apesar do técnico garantir à apresentadora que desta vez está morto, esperneia que nem um condenado enquanto o penduram de cabeça para baixo e lhe abrem as goelas com uma faca para que se esvaia em paz e sem stress.
Quando desliguei a televisão, enojado, o desgraçado já tinha despejado umas boas golfadas de sangue e, apesar de atordoado e morto, ainda esperneava.
Mas este tipo de programas interessa exactamente a quem?   

Há quem diga, e bem, que somos resto dos que ficaram.



Consta que fomos, mas que já não somos.
Consta que o que somos não é nada do que fomos.
Se foram audazes os que em tempos foram,
Com eles iam a semente e o arrojo.
E porque nós ficámos, acabámos orfãos.
Recolhidos à sorte do conforto;
Do nada.

E se hoje é dolorosa a ida,
Será talvez resiliente a espera.

O conforto do aguardo,
É novamente o nada.

Se quem parte sofre, sofre quem fica.
Se para partir é necessário peito...

Se para ficar a arte de esperar por ontem.

Não se sabe audaz quem vai,
Se mais tenaz quem fica.
No aguardo...



quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Da necessidade de colocar sempre as coisas em perspectiva ou como dizia o Peter Gabriel "if looks could kill, they probably will"


Compro meias duas vezes por ano.
Sempre no Verão, sempre no Inverno e praticamente sempre no comércio tradicional.
Hoje é Inverno e fui às meias.
Fui à Baixa, fui enganado na Briosa porque me venderam um folhado de Chaves que veio a pé de lá e começou a caminhada, quase de certeza, antes do Natal- não merecia, sou cliente habitual e dos que compram pastéis às caixas - e mesmo tendo sido enganado e tendo reclamado ainda comprei uma caixinha de Nevadas que essas sim, essas mesmo que venham a pé é de Penacova que, convenhamos, além de mais perto é sempre a descer.
Entre a Briosa e as meias encontrei músicos e dei asas ao meu lado filantrópico: ao mecenato do nível que me posso permitir. Distribuí moedas...quis o destino que só tivesse das grandes.
Chegado às meias. Lindas. De lã para manter os pés quentinhos (deitar em lençois lavados e calçar meias de lá novas são dois prazeres igualmente bons e igualmente reminiscentes, quase viagens à infância, ao colo). Comprei quatro pares com vinte e cinco por cento de desconto. Vou andar com um pé gratuito…
Paguei em dinheiro (mais ou menos) vivo e faltou-me uma moeda para facilitar o troco.
"Desculpe, mas dei as moedas todas aos músicos. Também trabalham e têm direito...".
"Isso é verdade e respeito-os, mas podiam ter um repertório mais variado. O senhor já viu a estafa que é estar aqui uma tarde inteira a ouvir sempre as mesmas três músicas? Uma pessoa cansa-se. Ainda se houvesse clientes…”.
Foi aí que se me fez luz e me preencheu a memória a senhora da loja em frente ao Millennium a quem quase agredira com os olhos momentos antes.
A senhora que, de caneta em riste, saiu porta fora, vermelha, e pediu ao rapaz do saxofone que se calasse um bocadinho ou que mudasse de sítio. Chovia e eu estava abrigado ali ao lado, deliciado com um solo de free jazz extraído com o que me pareceu competência, de um saxofone preto e cromado e que, poderia jurar, tinha mais botões que o costume. E como o rapaz do saxofone fazia render os dois euros que lhe tinha posto na caixa, senti-me roubado por quem o mandava calar.
Baixei os olhos que antes tinham literalmente esfaqueado a senhora que só queria fazer o inventário com a cabeça sossegadinha e segui prás meias a pensar no quanto a nossa sociedade estava a ficar irritadiça.
Afinal não.
A moça das meias é menina para ter razão.

domingo, 6 de janeiro de 2013

De como um arrazoado de inutilidades pode ter, afinal, algum sentido


Não me custa nada ser pobre, exceptuando talvez a chatice que é a sensação de não ter dinheiro.
Tirando o acima exposto, ser pobre não é pior hoje do que sempre foi.
Mau mesmo é pensar à pobre, coisa que nem os pobres fazem.
Mau mesmo é pensar que o amanhã não tem como ser melhor que o hoje.
E eu hoje, tenho que concordar comigo, tendo a pensar à pobre.
Continuo a fazer o que sempre fiz. Vivo abaixo das minhas reais possibilidades e sinto-me, como aliás sempre me senti, perfeitamente confortável com isso.
O que me causa urticária é o incómodo de saber que alguém, algures, se convenceu que é importante eu ser pobre para que a área geográfica alargada onde me inseriram consiga garantir a um grupo de privilegiados que continuem a ser privilegiados - Sou pobre mas por razões financeiras e não doutrinárias, principalmente se forem razões doutrinárias ditadas por outrém.
Dificilmente conseguiria ser comunista, daqueles à antiga, enclausurado do lado de lá da cortina de ferro. Só a uma entidade permito que me mande poupar: à minha carteira.
Não tenho raiva, apenas inveja, de quem tem mais que eu. A inveja é para muitos um catalizador - uma mola impulsionadora. Para mim é uma merda: gostava de ter o que fulano tem, mas não me apetece ter o trabalho necessário à sua obtenção. Daí que aprecie, de coração aberto, quem tem sonhos e tudo faz para os concretizar. Quem luta com ardor e com a razão do seu lado, merece o meu mais profundo respeito e a minha mais prolongada admiração. É essa a minha inveja.
É que há pobres que me causam esta minha peculiar inveja...
Ser pobre sim, mas por força das circunstâncias. Jamais por força da doutrina.
A doutrina que nos põe a pensar à pobre, coisa que nem os pobres fazem.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

My name is Can, Ameri Can.



Os primeiros comentários fizeram-me ficar de pé atrás, não o posso negar.
"Provavelmente o melhor Bond de sempre"
"Skyfall é o melhor filme da saga 007"
Desde que gastei dinheiro num bilhete de cinema para ver o "Festim Nu" do David Cronemberg (Naked Lunch no original) e só vi gente vestida que me habituei a desconfiar dos críticos de cinema, sejam eles assumidos ou curiosos.
E mais uma vez confirmei a minha teoria.
Skyfall é um excelente, repito, excelente, filme de acção.
Americano.
Skyfall é um excelente filme de acção americano.
Tem um "artista" com ar reguila que se farta de correr embora diga entre dentes "já não tenho idade para estas coisas" e transpire que nem uma chaleira a fazer lembrar a nova moda americana de pôr velhos à porrada nos filmes. Tem uma cena de sexo fugidia com o que parece ser uma prostituta num bairro pobre e outra cena de sexo, ainda mais fugidia com uma prostituta macaense assumida. Tem porrada à americana que envolve correntes de ferro e onde o "artista" leva mais vezes do que dá. Tem facas (???????). Tem uma reviravolta algures durante a história. Tem um enredo e tem um final de típico filme de acção americano: um mano a mano onde o resto do mundo ficou para trás e apenas os dois "artistas", o bom e o mau, se degladiam. Nas palavras dos próprios, "The last two rats". Claro que aí aperceberam-se que a coisa estava a ficar muito "cliché" e obviaram o mano a mano: quando ficaram só os dois em condições de funcionalidade, um mata o outro pelas costas sem mais delongas.
Tivessem posto o nome de Freddy ao "artista" e tivessem dado maior enfase ao facto de Kincaid ter chamado Emma a "M" e ninguém se aperceberia que se tratava de um "double 0 seven movie."
Ah! E o David Brown 5 que mais valia terem deixado na garagem, se era para o espatifarem - mais uma americanice.
Javier Bardem deu a credibilidade necessária a um vilão que se preze, além de um tique de modernidade ou "political correctness" (vejam o filme para compreenderem este ultimo comentário). Pese embora o facto de no livro que deu origem ao filme de 1974, "O homem da pistola dourada", Ian Fleming já ter aflorado esse tema ao descrever Scaramanga. O tema? Vejam o filme (o Skyfall) e aquela que poderia ter sido a terceira cena de sexo.  
Finalmente revelo o porquê de tanta gente dizer que este é que é o melhor filme da saga: este filme enche as medidas a quem tem saudades de quando se andava no carro sem cinto de segurança, de quando os brinquedos eram pintados com tintas toxicas e soltavam peças capazes de sufocar um elefante em segundos, numa palavra, pessoas que sabem a relação que existe entre uma esferográfica e uma cassete.
E porquê?
Porque este filme começa com um hardrive e acaba com uma facada nas costas no meio do nada, sem água potável nem luz. Porque este filme prova que, apesar da tecnologia, "é sempre preciso alguém para apertar o gatilho" nas palavras do "artista" ou atirar a faca, acrescento eu...

Quanto ao que eu penso do James Bond, está aqui o que eu penso.
    

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Treze


Acabei de despir o casaco mais pesado que alguma vez carreguei.
Carreguei-o durante um ano e senti cada dia que com ele andei vestido.
Dois mil e doze foi o meu ano do estupor.
As vértebras da minha alma ficaram irremediavelmente pisadas sob a pressão do peso das pedras que o rancor me foi diariamente colocando nos bolsos.
Transporto comigo marcas que tempo nenhum conseguirá apagar. Foi dois mil e doze que me ensinou a conter a raiva. Uma coisa fria e dolorosa que se instala nos terminais da dor e só passa quando se dá um chuto no balde.
Em dois mil e doze ruiu o único plano que tive na vida. Não foi a vida porque essa não se planeia. Deixa-se empurrar ao sabor dos sonhos e das oportunidades – nunca à força de planos, passo primeiro para o dissabor.
Da minha vida não me queixo. O essencial, tenho-o em dose suficiente e se não me considero feliz é apenas porque não entrego à minha felicidade o protagonismo que ela me quer diariamente exigir. Prefiro apostar na felicidade terceira.
O ano de dois mil e doze foi o ano do estupor para o meu plano de quase vinte anos. Um plano de realização profissional que construí e guardei em caixinhas de suportada resiliência à espera de um dia lhe poder dar a luz do sol.
Ruiu em dois mil e doze.
Hoje não tenho plano. Permiti-me utilizar todo o ano que findou para digerir o estupor – a admiração. Aquela reacção aparvalhada de levar um murro sem contar e olhar em volta à procura do autor.
Hoje, um de Janeiro de dois mil e treze, não tenho plano: tenho a vida. A tal que se deve empurrar ao sabor dos sonhos e das oportunidades.
Nada será como dantes, excepto o quotidiano.