sábado, 9 de julho de 2011

de quando as coisas pareciam o que eram, ou era eu que as via assim...

O TRONO DO REI ESCAMIRO
António Torrado (texto original)


O trono do rei Escamiro Ramiro era digno de ser visto.
Era um trono muito rico, todo trabalhado. O rei Escamiro Ramiro sentava-se nele e recebia a corte, os ministros, os embaixadores e gente assim.
Mas um dia, o trono começou a balançar um bocadinho. Uma das pernas tinha dado de si.
Chamaram o carpinteiro real, mas ele tinha ido para férias. Veio o aprendiz.
O aprendiz ainda estava a aprender para carpinteiro. Começa-se sempre por ser aprendiz.
Para equilibrar o trono, o aprendiz serrou um bocadinho às outras pernas, mas, fosse como fosse, o trono continuava coxo.
Então o aprendiz serrou mais, mais e mais e mais e mais...-ora dum lado, ora do outro, ora do outro, ora do outro – até que o trono ficou sem pernas.
O rei achou graça. Achou mesmo imensa graça e mandou fazer um baloiço com o que restava do trono.
E ele, o rei Escamiro Ramiro, onde passou a sentar-se para receber a corte, os ministros, os embaixadores e gente assim?
Passou a sentar-se num banco igual aos outros.
O rei Escamiro Ramiro não dava importância a certas coisas.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

da lagartice


Sei que era quarta-feira porque o Sporting jogava com uma equipa espanhola para a taça UEFA.
Perdeu, se a memória não me atraiçoa. Não cuidei de ver o jogo.
Mil novecentos e noventa e um ou noventa e dois, não consigo garantir, mas era um final de tarde, pelo menos de Primavera, senão de Verão.
No cartaz do cinema Oxford em Cascais, "The Doors" de Oliver Stone, com Val Kilmer a encarnar o papel de James Douglas Morrison.
Nessa altura não havia internet, a MTV era uma coisa de que só se ouvia falar numa música dos Dire Straits e as edições em VHS eram escassas.
Resumindo; nunca tinha visto o Jim Morrison sem ser em revistas. Sabia que naquele caso era um  actor, mas estava entusiasmado.
Conhecia os albuns todos dos Doors - venerava a banda.
O Oxford estava deserto. As poltronas eram altas, claras, extremamente confortáveis, mas um final de tarde de um dia de semana mantinha-as vazias.
Pela primeira e última vez na minha vida, tive um cinema só para mim.
No intervalo, em que o funcionário me perguntou se podia retomar após a troca da bobine ou se pretendia ir tomar um café, aproveitei para contar as filas, o número de poltronas por fila e ousei sentar-me rigorosamente no centro da sala. Senti-me um rebelde: um homem que tinha diariamente sob o seu comando cerca de cinquenta pessoas, mas que naquele momento nada mais era que um garoto sozinho num cinema onde podia escolher o meu lugar sem prestar contas a ninguém.
O filme não valeu o preço do bilhete, excepto pela banda sonora que já conhecia de trás para a frente. Nem a Meg Ryan me entusiasmou.
Morreu nesse dia o encanto. Reconheci a James Douglas Morrison, poeta que o mito fez Maior, o direito ao livre arbitrio de querer ou não compartilhar o seu mundo com o mundo. O restolho de um homem que podia ser e não quis e que apenas a morte engrandeceu. Era a vida dele e ninguém tinha o direito de lha usurpar.
Fez o que fez e, embora pouco, foi bom: mas mais pelo que disse que pelo modo como o disse.
Daí, ainda hoje preferir "An American Prayer" a qualquer outro dos albuns editados da banda. Se calhar uma escolha idiota, se calhar uma presunção.
Jim Morrison, rezam hoje as lendas, morreu entre uma casa de banho de um bar e uma banheira de uma casa da banho de hotel em Paris no dia 3 de Julho de 1971.
Desfoquei propositadamente a data.

sábado, 2 de julho de 2011

dos Amigos

A coisa mais admirável nos amigos é a característica única do encadeamento.
O amigo verdadeiro não é aquele que nos dá o ombro para chorar - esses podem ser os da ocasião.
O amigo verdadeiro não é o que nos apoia na queda e que nos dá a mão - isso pode ser apenas cortesia e boa educação.
O amigo verdadeiro é o que encontramos passados vinte e seis anos e que recomeça a conversa precisamente no ponto em que foi deixada. É o que nos faz descobrir que no coração há caixas e que algumas são eternos cofres...
Num coração sadio existe espaço para milhões de amigos. Embalados por níveis e por graus de importância - etiquetados e guardados, muitos.
Esta noite estive entre amigos; alguns que não via há vinte e seis anos, dos quais nada sabia há vinte e seis anos. Imagens que me saltaram ao caminho e corporizaram memórias de tempos. Vivências conjuntas e experiências marcantes. Sonhos vividos e morridos, guardados onde não sabia.
E revivi o meu primeiro amor. Drasticamente não correspondido. Nascido, crescido, sofrido, resolvido e arrumado no cofre das indisponibilidades. Embrulhado e devolvido ao sonho que disso não passou.
E retomou-se a conversa recordando que a vida passa por nós deixando lastros transversais e pequenos toques de melancolia e peças amontoadas em caixas deixadas num canto que rapidamente se organizam e nos trazem, a uns nostalgia, mas a outros uma profundíssima noção da força que o tempo exerce sobre a nossa vida.
Amarrados ao futuro, andamos, com o peso do passado. Mesmo que não seja essa a nossa vontade.