sábado, 8 de fevereiro de 2014

Uma crónica egoísta...



O jornalista Abílio Simões acompanhado de Messias Costa (pai deste vosso criado) a ouvirem atentamente um profissional de cozinha na Feira de Gastronomia de Santarém enquanto este tentava explicar o porquê dos leitões estarem tão chamuscados.

A foto foi surripiada ao Nuno Canilho.
Presumo que seja património do Jornal da Mealhada.




Vamos lá que isto não vai ser fácil.
A memória mais antiga que tenho do padre Abílio envolve uma moto e uma chegada mais ou menos espalhafatosa à capela de Sant'Ana. A moto, uma CZ ou uma Jawa ou nenhuma das duas (não tenho a certeza), não tinha travões - confirmou o próprio na altura. Ninguém se magoou.
Estava com um grupo de amigos à porta da capela e esperávamos pelo pároco para abrir a porta. Era dia de catequese. Correria o ano de setenta e cinco ou setenta e seis.


O padre Abílio Simões apresentou-se ao serviço nos finais de mil novecentos e setenta e quatro com o intuito de apascentar as almas da Vacariça e da Mealhada em substituição do padre Gil que se retirara para o Seminário, julgo eu.
Os tempos eram de tumulto e só me lembro que, pelo menos na parte que diz respeito à Mealhada, será exagero dizer que entrou com o pé direito. Assumamos que tinha uma personalidade onde se misturavam ideias conservadoras e ideias progressistas, isto falando dos tempos do PREC, obviamente.
Não interessa nada para aqui, mas lembro-me de ouvir o primeiro presidente da Associação de Estudantes da Escola Secundária da Mealhada, feroz militante da JSD, anos mais tarde, chamar-lhe carinhosamente "padre comunista". O eminente político era e é o meu irmão, caso alguém queira apresentar queixa pelo sucedido.
Comigo, o padre Abílio falhou profissionalmente porque apesar de catequisado, comungado, escuteirado e até iniciado no crime pela mão dele, não me restaram laços mais que os indeléveis ditados pelo baptismo em relação à Santa Madre Igreja.
Foi com assumido e rosnado desgosto que me casou sem que eu me confessasse ou sequer comungasse na cerimónia.
Um parentesis apenas para explicar a questão da iniciação ao crime de que falo acima: uma rádio pirata. Funcionou numa sala da capela de Sant'Ana a segunda rádio pirata da Mealhada, emissora cujas emissões irregulares tive o prazer de abrir em conjunto com um restrito grupo de radialistas. A rádio ELBA, emissora livre da Bairrada, nasceu da cabeça, do querer e do patrocínio de Abílio Simões e quero deixar aqui público e vivo testemunho que jamais houve qualquer interferência na linha editorial (inexistente) da emissora por parte da autoridade eclesiástica. Quer dizer: levei um puxão de orelhas quando disse no ar que Bob Marley fumava liamba enquanto recitava passagens da Bíblia.
Se fosse viva, a rádio Elba completaria amanhã vinte e oito anos de emissões efectivas. O dia nove de Fevereiro de mil novecentos e oitenta e seis foi Domingo de Carnaval e o rei, Lauro Corona, foi entrevistado para a rádio ELBA: ainda tenho a cassete. Um dia de glória, o único, em que estivemos um passo à frente da Rádio Livre da Mealhada. Abrimos as emissões com a entrevista.

Podia aqui falar das noites de copos no Lopes quando a RTL passava filmes softcore e onde um resignado pastor de almas assistia do canto do balcão, enfiado na sua condição de mortal, ao pecado na tela e nas cabeças de todos quantos, tal como ele, comiam uma dobradinha a desoras...

E podia falar de um cinco de Abril que calhou numa Sexta-Feira Santa. O meu pai fazia anos, encontrou o padre Abílio e convidou-o para jantar em semi-pecado: paella! Comeu carne e concedeu a bula e por aí não veio mal ao mundo. Pelo meio deixou a minha mãe sossegada pois afiançou-lhe que estava a pecar em consciência.

Podia aqui falar do lado mais fabuloso deste homem que marcou a nossa vida durante trinta e tal anos. Do seu apego ao rebanho. Da sua disponibilidade para acompanhar, no sentido literal do termo, todos quantos sofriam numa cama de hospital ou mesmo em casa quando a coisa era de cuidado. Não deve ter passado uma semana nesses trinta e tal anos que o padre Abílio não tirasse uma tarde para ir visitar os doentes ao hospital. Pelo menos uma tarde.
Um homem que se deu ao seu semelhante.

Podia falar das manhãs de Páscoa em que a sala lá de casa rescendia a cera e onde a mesa se vestia de iguarias finas para receber a cruz e posso dizer com assumido e galhardo orgulho que não houve um só ano que o padre Abílio não nos honrasse com um brinde de espumante e um bocadinho de bolo com queijo da Serra. Haja quem me contradiga...

No dia em que teve que encomendar o corpo do meu pai, o padre Abílio chorou em plena missa. Não terá sido a primeira nem a última vez, mas foi uma distinção que se me alojou no peito e que nunca mais daqui sairá.
Tinham desenvolvida uma relação mais chegada a partir do momento em que o meu pai, que eu só via na igreja em casamento ou funerais,  foi arrebanhado para fazer parte da comissão fabriqueira da Igreja de Sant'Ana - a igreja nova onde várias pessoas enterraram bastante tempo e o padre Abílio investiu muito do seu dinheiro. Presumo que mesmo muito. Dificilmente se saberá alguma vez quanto.

O padre Abílio Simões foi um ilustríssimo mealhadense, um homem de coração ENORME, um irmão do povo da Mealhada que morreu, passaram ontem sete anos e que receberá amanhã a homenagem que lhe é devida por ter sido quem foi.

Foi uma honra ter privado com ele.

2 comentários:

  1. Obrigado Pedro. Por esta crónica e pelo busto.

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  2. Creio que cada um de nós tem uma historia com o padre Abilio. As minhas são muitas e todas elas com graça.Privei com ele pela 1ª vez em 81 e a empatia foi reciproca.Foi tambem uma honra ter privado com ele.

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