sábado, 29 de outubro de 2011

do Messias


Antes de sermos pobres com tiques de rico, fomos apenas pobres. Tinhamos apenas o que o dinheiro permitia comprar e, tal como os pinguins, juntava-mo-nos, cuidando que do convívio nasceria a felicidade.
E de facto até nascia.
Foi o tempo das festas populares no verão, das tertúlias de café, dos grupos de amigos na praia, do cinema...
Ninguém se fechava em casa. Se calhar porque a falta dos artefactos modernos fazia da "casa" apenas o lar e não o moderno "playground" que hoje orgulhosamente ostentamos. Sem consolas, computadores, DVDs, internet, home cinemas, a casa era uma entidade... chata.
Desde muito cedo que o Cine Teatro Messias se encaixou na minha vida. Tenho como primeira memória as faustosas (pareciam-me na altura) festas de Natal das Caves Messias onde havia "à discrição" laranjadas Bussaco e pães de leite com fiambre e manteiga. E no fim distribuiam-se as prendas e um bolo-rei da Império por funcionário. E no dia de Natal à tarde havia sempre matinée: o Zorro, o Herbie...
Uma vez por ano havia um espectáculo dos miúdos da Casa do Gaiato em que toda a família se refastelava a ver umas rábulas inocentes e música. Uma noite (sem ser o Natal) em que me era permitido estar acordado até tarde: um bónus. As famílias ofereciam bolos e sandes para o lanche dos Gaiatos e eu abalava para casa a olhar para trás, considerando injusto não ter autorização para me deliciar no repasto dos artistas.
Foi o Cine Teatro Messias  que me proporcionou uma noite sem dormir quando, a contragosto, o meu irmão me levou a ver o Tubarão, tinha eu perto de dez anos.  Ou que me deixou dormir quando, vários anos mais tarde, me refastelei numa cadeira de pau que me pareceu um sofá e dei largas ao tédio assistindo ao filme A Missão com Roberto de Niro.
Vi no "Messias" o primeiro softcore (Calígula, de Tinto Brass) e o primeiro hardcore (desse não me lembro o nome, mas fui ver com o Tatá).
Foi o palco do "Messias" que acolheu as récitas do Grupo Recreativo e cultural Sem Nome, ainda nos finais de setenta, a única experiência cultural consistente que alguma vez existiu na Mealhada.
Os bancos das plateias, com assento de pau, contrastavam com os do balcão, almofadados e de preço superior. Do balcão havia quem atirasse coisas para a plateia, umas vezes rebuçados comprados no bar, outras vezes não. Berrava-se e assobiava-se de cada vez que a fita partia e no intervalo havia sempre que comentasse, doutamente, que o filme estava todo cortado, nunca se apurando concretamente com que intuito.
Foi no "Messias" que pisei um palco pela primeira vez, a tocar bateria num playback dos Whitesnake com o Tatá, o Deolindo, o Fernando e o Luis Carlos numa festa do liceu. E no mesmo local o voltei a pisar, vinte e tal anos depois (com a casa já remodelada e profundamente comovido) pela segunda e última vez, vestido de avestruz, numa festa do infantário do meu filho. Felizmente não há registos destes dois eventos.
E o Menino Mota que se sentava sempre na primeira fila, privilégio que lhe assistia por distribuir os cartazes dos filmes. E o Rui Paulo, que invariavelmente via os filmes numa das frisas, mas que no intervalo se juntava ao resto da maralha para discutir as cenas mais fantásticas da primeira parte. Discutia-se a relevância do "artista" (epíteto do actor principal) que raramente era uma mulher.
E no intervalo comprávamos vinte e cinco tostões de rebuçados ou caramelos enquanto os adultos (ou não) bebiam uma tacinha de Bomfinal rosé. Às vezes havia uma gasosa Bussaquina.
O "Messias", nessa época gloriosa, não integrava as rotas das melhores distribuidoras e os filmes apareciam por cá a destempo, mas isso era um pormenor de somenos importância.
O andar do tempo acabou por separar-nos e foi já em rota separada que o edificio acabou por fechar quando já não era segura a sua utilização. Antes, percorreu o calvário de degradação que Tornatore tão bem descreveu no Cinema Paraíso.
Em boa hora a autarquia pôs mão à obra e recuperou o espaço de forma magistral para ser reinaugurado como Teatro Municipal, passaram anteontem dez anos. O "Messias" é hoje uma excelente casa de espectáculos que honra a Mealhada e que tem apresentado uma cartaz multifacetado, dedicado aos vários públicos, mas sempre de altíssima qualidade. Pena é que as salas de cinema estejam em crise e logo quando finalmente estreiam na Mealhada os filmes que estreiam na capital. Ao mesmo tempo.
Hoje há festa e lá estarei, novamente comovido, para ouvir o José Cid, um amigo da casa.
Parabéns a todos nós.      

3 comentários:

  1. Não ocorreu exactamente da mesma forma, mas deixou igualmente belas recordações. Algumas variantes como "O quebra-ossos" ou os bailes de Carnaval, mas na essência, marcante!
    Actualmente, numa zona de grande beleza e cuidada, o que não acontecia na época!
    Estão de parabéns, a obra e seus mentores!
    Abraço

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  2. Não precisavas de denunciar o Tatá por ter visto contigo um filme hardcore. Era a garganta funda da Ciciolina.

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  3. A garganta funda não é do meu tempo e o da Cicciolina vi no Sá da Bandeira no Porto: eu e uma tuna da universidade que abrilhantou os momentos altos do filme com rufos de caixa.

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