quarta-feira, 29 de maio de 2024

do que se faz quando podemos decidir o que queremos fazer no tempo que é nosso



Encostei o carro, com o sol a bater de chofre, fechei os olhos e desfrutei.
O segundo e terceiro actos da peça Frei Luis de Sousa, de Almeida Garrett, difundidos (todos, mas na semana passada já tinha dado o primeiro acto e no primeiro acto não acontece nada de relevante, por isso passemos à frente) pela Antena 2 no âmbito da passagem do centenário do nascimentos da actriz Carmen Dolores.
A peça foi gravada e difundida pela Rádio em cinquenta e tal do século passado, há cerca de setenta anos, portanto. O Ruy de Carvalho encarna a personagem de Manuel de Sousa Coutinho e a Carmen Dolores a de Madalena de Vilhena. O Carvalho teria vinte e tal anos e a Dolores um nadita mais. A peça foi produzida por Jorge Alves, um nome que dirá alguma coisa à mocidade da minha idade porque apresentava o Cartaz Tv na RTP na época em que éramos tão desgraçados que até a programação e o totobola nos deixavam colados à televisão.
A sôdona Madalena de Vilhena, mal suspeitou que o marido (D. João de Portugal) tinha morrido em Alcácer Quibir, viu que não havia pensão de sobrevivência para ninguém, enfiou-se debaixo do Sousa Coutinho, emprenhou e por isso teve que casar com ele.
Tiveram uma filhota, como se diz hoje, que começou cedo a escarrar sangue que nisto do pecado o Garrett não se ensaiava nada em fazer sofrer até as crianças.
Resumindo: o corno não tinha morrido, regressou passados vinte anos, a garota cresceu mas continua tísica, a ex mulher que afinal não era nada ex vestiu o hábito e preparou-se para ir fazer papos de anjo e toucinho do céu para um convento enquanto o Sousa Coutinho andou uns tempos atordoado porque não sabia o que havia de fazer da vida. Afina, era amigo do D João e tinha aproveitado a ausência do amigo para lhe comer a mulher. É dose...
Já não me lembro de como acabou porque ficou muito calor dentro do carro e fui dar um passeio ao ar livre enquanto fazia horas para Mia Bella abrir e ir buscar umas pizzas para o jantar.
Quando regressei ao carro já era o Sibelius que estava a tocar a segunda sinfonia que, consta, era um panfleto contra os russos. Tenho que ir reler o Frei Luis de Sousa para ver o que aconteceu. Li há quarenta anos, mas foi para as aulas e toda a gente sabe que essas leituras não contam.
Tudo isto para dizer que nada há de mais prazeroso que sermos donos do nosso tempo, podermos encostar o carro apenas porque nos apetece ouvir a estória do Frei Luis de Sousa, que arrastou os cornos da Terra Santa até Lisboa.
Um mártir.

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